domingo, 27 de maio de 2012

Post nº 57

GALLA  PLACÍDIA  -  A  ÚNICA  MULHER  QUE  
GOVERNOU  O  IMPÉRIO  ROMANO

Gala Placidia - Retrato autêntico pintado provavelmente entre 432 e 435 DC
 por artista da época cujo nome a história não registrou

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Algumas mulheres romanas, como Lívia, esposa de Augusto, e Agripina, esposa de Cláudio, tiveram grande influência nos negócios do Império, mas apenas nos bastidores. Outras tiveram relevante papel político público e deram as cartas do jogo, como foi o caso exemplar da bilionária Júlia Maesa, tia do imperador Caracala e avó dos imperadores Heliogábalo e Alexandre Severo, porém jamais exerceu o poder oficialmente. A única que de Fato e de Direito empunhou o cetro imperial foi Galla Placídia, uma das mais notáveis e menos conhecidas estadistas da História, mas só os fatos de nascer em Constantinopla no século de nascimento do Império Romano do Oriente e morrer em Roma no século da morte do Império Romano do Ocidente, já fornecem material suficiente para conjecturas cabalísticas de astrólogos e numerólogos. Ademais, como se fosse para acentuar a sua singularidade, não existe na História mulher que tenha sido tão “sangue azul” quanto ela, pois era neta do imperador Valentiniano I, sobrinha-neta do imperador Valente, filha do imperador Teodósio I, sobrinha dos imperadores Graciano e Valentiniano II, irmã dos imperadores Arcádio e Honório, esposa em primeiras núpcias do Rei Ataulfo e em segundas núpcias do imperador-adjunto Constâncio, tia do imperador Teodósio II, mãe do imperador Valentiniano III e, finalmente, imperatriz munida de poderes institucionais durante mais de uma década. Era, portanto, próxima por sangue a nove imperadores e por lei a um rei e a um imperador, oito dos quais reinantes em sua época. Porém, o mais curioso é que ela também poderia ter sido sogra de Átila, famoso rei dos Hunos, e do filho de Genserico, temido rei dos Vândalos!

                            Mapa do Império Romano do Ocidente no século V, época de Placídia, em meu livro
                                      "Intimate memories of Flavius Marcellus Aetius" (Athena Press - London)

Aelia Galla Placídia nasceu em Constantinopla em 390 e morreu em Roma em 450 aos sessenta anos de idade. Poderia ter uma vida calma e feliz se quisesse, não só por sua origem e posição, mas também por sua beleza, saúde, prendas domésticas (fiava, costurava e bordava com perfeição), inteligência, cultura e fortuna. Todavia, ao contrário do que se esperaria de uma mulher em suas condições, ela preferiu viver em escuro mar tempestuoso e não em tranqüilo lago azul. Talvez para isso tenha contribuído a sua infância infeliz. Filha caçula do imperador Teodósio I e da imperatriz Galla, ficou órfã de mãe aos quatro anos de idade e de pai aos cinco. Gravemente enfermo e prevendo a morte próxima, Teodósio nomeou sua sobrinha Serena e o marido, general Stilicon, tutores dos seus filhos menores, o que fazia do general o regente do Império no caso do seu falecimento. Este efetivamente ocorreu pouco depois e tanto o adolescente Honório como a menina Placídia foram morar na casa de Stilicon. Este passava quase todo tempo ocupado com assuntos do Estado e pouca ou nenhuma atenção dava aos filhos e aos tutelados, deixando-os inteiramente aos cuidados de Serena, mulher culta e inteligente, mas também fria, dura e prática, como o marido e o tio.

    Muralhas de Constantinopla, onde nasceu Placídia. Eram julgadas
               inexpugnáveis e resistiram a ataques durante 11 séculos

O último grande poeta da antiguidade, Claudiano, compôs belo poema sobre os méritos de Serena, mas como era bajulador e fizera o mesmo em homenagem a Stilicon, não se pode confiar muito em seus juízos de valor. De qualquer forma, as virtudes domésticas de Serena eram conhecidas e todos sabiam que ela dirigia sua casa da mesma forma como seu marido dirigia um quartel, impondo rigorosa obediência, severa disciplina e estrita moralidade. Ajuntava a isto um rígido horário de estudos para os adolescentes Euquérius, seu filho, e Honório, seu primo e tutelado. Fazia o mesmo com as meninas, as quais eram também obrigadas a aprender matérias domésticas essenciais a uma esposa nobre da época: administrar a casa, zelar pela higiene, vigiar e dirigir a criadagem, supervisionar a cozinha, tecer, costurar, bordar, etc. Disto não escapou Placídia, que deve ter se sentido maltratada e humilhada por Serena.

Díptico do final do século IV retratando o general Stilicon, sua esposa Serena e seu filho Euquérius,
noivo de Placídia desde a infância. Tudo indica que ela participou do assassinato dos três.

Órfã e dona de imenso orgulho, desde pequena ela deve ter visto na prima e tutora apenas um carcereiro e verdugo, acumulando no coração ódio doentio contra ela e sua família, pois não há outra explicação para sua absurda e cruel atitude posterior. Porém, enquanto Placídia crescia e era educada com severidade por Serena, Stilicon obtinha vitória após vitória sobre os bárbaros, acrescendo imensa popularidade ao seu já enorme poder político e militar. Por isso é difícil entender por que, ao invés de se proclamar imperador, preferiu casar seu tutelado Honório com Maria, sua filha mais velha, e coroá-lo ao atingir a maioridade. Embora correta do ponto de vista moral e institucional, a atitude de Stilicon surpreendeu, sobretudo porque seu tutelado e genro era notoriamente curto de inteligência e tido como idiota pela maioria das pessoas. Mas todos acharam que, sendo um homem decente, Stilicon preferira continuar governando como Primeiro-Ministro do que desrespeitar a lei.


Em minha opinião o fato se deveu mais a razões sentimentais do que a razões políticas, pois Stilicon dedicava amizade e fidelidade caninas ao seu falecido amigo, protetor, e quase sogro Teodósio I, o qual criara a sobrinha Serena como filha e a dera como esposa a um simples oficial de carreira, notável por sua lealdade, bravura e competência, mas pobre e de origem humilde. Teodósio e Serena pertenciam a riquíssima família espanhola de origem romana, enquanto Stilicon era filho de modesto oficial germânico de nacionalidade vândala, que somente se tornara cidadão romano por ter sido guarda-costas do general Teodósio Flaviano, avô de Placídia. Tudo indica que a lealdade e gratidão à família Flávia passou de pai a filho e o nobre caráter de Stilicon jamais lhe permitiria ser ingrato a aqueles que tinham sido tão generosos com seu pai e consigo próprio, por mais favoráveis que lhe fossem as condições políticas e militares. Ademais, ele se tornara um Flaviano pelo casamento, e trair a confiança do seu falecido chefe e benfeitor estava fora de questão.

Porém, como dizem os cínicos, toda boa ação será castigada! Em 408 Stilicon foi assassinado traiçoeiramente por ordem do seu ex-tutelado Honório numa igreja em Ravena, e poucos meses depois sua viúva Serena e seu filho Euquérius foram executados sem que Placídia erguesse um dedo em favor da mãe e do irmão adotivos. A absurda intriga palaciana por trás da tragédia ainda hoje é difícil de entender, e foi um dos fatos que apressaram ainda mais a dissolução do Império Romano. Porém, o grau de apodrecimento da sociedade da época manifesta-se na clara evidência de que a então jovem Placídia estava por trás dos nefandos crimes, porque nada teria acontecido se ela não tivesse com eles concordado, já que era sabida e notória a grande influência que exercia sobre o seu imbecilizado irmão-imperador.

Com a morte de Stilicon, o Império, que já vivia em difícil situação, ficou totalmente indefeso, e em 410 os godos tomaram e saquearam Roma, fazendo reféns muitos nobres ricos e importantes, entre os quais a princesa Placídia. Todos os reféns foram soltos após pagarem pesados resgates, mas ela continuou cativa e se tornou amante de Ataulfo, novo rei dos godos.

 Ataulfo foi o primeiro rei godo da Espanha. 
       Escultura de Felipe de Castro (1753)

Ambos casaram pelo rito ariano em 411 na cidade de Forli, na Itália, mas dois anos depois novo casamento foi celebrado com grande pompa pelo rito ortodoxo em Narbonne, na Gália, porque só assim Honório e os que governavam por trás do trono aceitariam fazer um tratado de paz vantajoso a Ataulfo. Com o casamento, ele tornou-se aliado do imperador idiota e, sem a sua ajuda, derrotou os generais rebeldes Jovinus e Sebastianus, que haviam se proclamado imperador e imperador-adjunto da Britannia e da Galia. Sem fazer qualquer esforço, e talvez nem mesmo entender direito o que se passava, o incompetente Honório conjurou uma das mais graves ameaças ao seu desastroso desgoverno, graças à sedutora beleza da irmã e ao valor militar do cunhado.


Imperatriz Galla Placídia e seus filhos Valentiniano e Honória. Pintura de autor anônimo do século 5º DC

Como prêmio por sua grande vitória, Ataulfo ganhou um reino no sudoeste da Gália, logo acrescido do nordeste da Espanha, e a aventureira Placídia, após percorrer a cavalo com ele toda a Itália e o sul da Gália, onde morou algum tempo em Toulouse, cruzou os Pirineus e foi morar na Espanha, pois Ataulfo escolhera Barcelona para sua capital. Porém, logo depois foi assassinado por um oficial traidor e Placídia foi humilhada, sendo obrigada a desfilar a pé atrás do cavalo do assassino na celebração do seu infame triunfo. Mas ela nem por um minuto perdeu a pose ou mostrou desespero, o que muito contribuiu para aumentar a fervorosa admiração que os godos já lhe tributavam. Isto talvez tenha sido decisivo para que alguns dias depois os indignados partidários de Ataulfo retomassem o poder, executassem os assassinos e Placídia retornasse à Itália firme, forte, e ostentando o pomposo título de Perpetua Regina Gothorum (Perpétua Rainha dos Godos) que o novo rei Vália lhe outorgara.

Honório era imbecilizado e não tinha filhos, por isso Placídia decidiu ser imperatriz reinante e, assim que o luto acabou, casou-se com o general Constâncio, comandante das forças armadas. Pouco depois fez o irmão idiota elevá-lo ao posto de imperador-adjunto, e em 417 teve uma filha a quem deu o nome de Honória para bajular o irmão. Em 419 teve um filho, a quem deu o nome de seu avô Valentiniano, e cuidou para que Honório, cada vez mais enfermo tanto da mente como do corpo, o fizesse seu herdeiro natural. Mas falhou, e isso lhe traria graves problemas no futuro.

                Mausoléu de Galla Placídia em Ravena. Ao fundo seu sarcófago e nas laterais os dos filhos 
                         Valentiniano e Honória. Mas estão vazios e não se sabe o que foi feito dos corpos

Sempre envolvida na política, meteu-se na eleição papal em 419, escrevendo cartas aos bispos e convocando sínodos, mas acabou transigindo e aceitando um Papa que não era do seu agrado. Três dessas cartas, onde discute assuntos teológicos e eclesiásticos, são conhecidas e mostram sua grande cultura e seu refinado estilo literário, mas as dificuldades da eleição papal mostraram-lhe que fazer papas não era tão simples quanto fazer imperadores, e parou de se intrometer nos assuntos da Igreja, passando a manter estreito e respeitoso relacionamento com o clero, coisa que lhe traria grande proveito. Placídia era estadista de primeira classe e o poder era seu principal objetivo, portanto concluiu que era melhor ter a Igreja como aliada do que como adversária, e a cobriu de favores e privilégios. Tudo ia bem quando Constâncio morreu subitamente e Placídia ficou de novo viúva, obrigando-a a multiplicar esforços para se manter no poder e conseguir do enfermiço irmão sem filhos adotar o pequeno Valentiniano como herdeiro. A historiografia do século V é péssima e as datas diferem bastante, uns dizendo que Constâncio morreu em 421 e outros que foi em 422 ou 423. O mesmo ocorre com as datas da morte de Honório, da coroação de Valentiniano III, e de vários outros acontecimentos marcantes da época, mas acho que 423 é a data mais provável para a morte de Constâncio e 425 para a morte de Honório. Embora isso não mude a substância dos fatos, torna a sua sequência mais lógica.

       Honório era um imbecil que se ocupava mais com as aves do galinheiro do palácio do que com os negócios
                                                     do império. Tela de John William Waterhouse (séc. XIX)

Procurando fazer do filho menino imperador a todo custo, pois só assim poderia exercer diretamente o poder na qualidade de regente, começou a tratar Honório com desusadas e excessivas mostras de carinho, inclusive em público, e disso não gostou Johannes, importante ministro que contava com o sólido apoio do poderoso senador Castinus e desde a morte de Constâncio planejava ocupar o trono tão logo Honório fechasse os olhos. Assim, com intrigas e calúnias torpes, espalhou que Placídia mantinha relações incestuosas com o irmão e, face ao escândalo, conseguiu que o imbecilizado imperador a expulsasse da Itália e a mandasse para Constantinopla, onde viveria exilada e quieta na corte do seu sobrinho Teodósio II, imperador romano do Oriente.

A posterior marcha dos fatos mostra que Johannes fora apenas mais um a ser enganado pela aparência bela e gentil da imperatriz, pois jamais teria mexido com ela se suspeitasse que ao faze-lo teria contra si perigosíssima serpente. Por enquanto ele podia se rejubilar da sua indecente vitória, mas muito em breve sofreria nas mãos de Placídia o castigo mais atroz já aplicado a um imperador romano em toda a longa história do Império.

Em 424 ela chegou a Constantinopla com os dois filhos pequenos na humilhante condição de exilada, mas, tal como ocorrera na trágica morte de Ataulfo, não se abateu e decidiu dar a mais contundente e cabal volta por cima, pois, apesar de bem tratada, percebia na face de todos o desdém e a satisfação que a desgraça dos grandes produz naqueles que os invejam. Por enquanto, se limitaria ao papel de expectadora, mas logo entraria no jogo de forma arrasadora e coroaria, com a mais inesperada das vitórias e a mais terrível das vinganças, a sua implacável marcha para o poder absoluto.

A continuação deste post está no post nº 81: "Johannes - O Imperador que Desfilou como Palhaço Montado de Costas em um Burro Antes de Ser Executado".